Viajar de bicicleta no nosso pais, felizmente ou infelizmente, ainda nos coloca numa posição de destaque. Sobressaímos por entre os automóveis, e suscitamos perguntas de quem connosco se cruza. Entre outros motivos, temos a liberdade de irmos para onde quisermos, quando quisermos, e não nos limitarmos a seguir as estradas com o resto do rebanho.
Por outro lado, viajarmos sozinhos ou, mesmo, estarmos sozinhos, costuma dar-nos mais abertura para contactarmos com quem nos rodeia. Vêem-nos, apercebem-se da nossa presença e espantam-se, instigando curiosidade e suscitando perguntas. E, assim, frequentemente surgem agradáveis conversas ou, como neste dia, interacções.
Na praia do Amado, depois de a ter atravessado para o extremo sul, fugindo à multidão, e de ter explorado os muitos recantos por entre dunas e rochedos, lá encontrei um spot que me agradou. Dali, poderia apreciar o pôr do sol, não era uma zona de passagem, estava mais elevado, dando-me alguma privacidade. Além disso, por ser entre duas pequenas dunas, providenciava-me abrigo suficiente do vento, mas não me roubava a panorâmica sobre o areal.
Instalei-me para comer qualquer coisa e apreciar as últimas horas de sol. Não levava grande aparato. Tinha parado, uns quilómetros antes, num trilho, para apanhar amoras. Muitas, de um grande arbusto, bem carregado delas. Deu para encher até meio o meu mini-tacho, e com algum pão, queijo, chouriço e tomate, foram uma bela refeição, ligeira mas agradável.
Durante esta viagem, tive sempre dois fieis companheiros, além da burra: o meu disco e as mulheres de Peito Grande, Ancas Largas. Não fazem exactamente o meu tipo (se é que isso existe), mas era o título do livro, também ele volumoso, que me acompanhou durante o verão. 600 páginas de uma epopeia familiar durante a China do século 20, da autoria de Mo Yan, recentemente galardoado com um prémio Nóbel da literatura.
Nesse dia, porém, a companhia que surgiu foi diferente. Um amigo de quatro patas, grande e peludo, veio sentar-se a poucos metros de mim, fitando-me com um olhar de quem diz "dá-me lá uma trinca disso que estás a petiscar". Não ladrou, não se aproximou demais, não sei para não parecer muito insistente, ou para não dar um ar de desespero. E, perante uma postura tão civilizada, não resisti e atirei-lhe um pedaço da minha sandes. Comeu-o em três tempos e por ali se deixou ficar.
Passado um bocado, como ele não abalara, lembrei-me do disco. Se é verdade que nós, humanos, podemos divertirmo-nos imenso com esse pedaço de plástico, não é menos verdade que muita gente o associa a brinquedo de cão. Assim, tirei-o da mochila, agitei-o um pouco à frente do cão que, imediatamente se pôs de pé. Na pior das hipóteses, ele deixar-se-ia ficar por ali, na esperança de que eu fosse buscar o disco e lhe desse oportunidade de atacar o meu farnel.
Saquei um pull para o meio do areal, cão e disco saíram disparados, e eu fiquei na expectativa de saber se voltaria a ver algum deles. Correu bem, e o cão, como que por instinto, trouxe-me o disco de volta. Perante esta inesperada hipótese de matar saudades do disco, não pensei duas vezes. Arrumei o que tinha a arrumar, lancei o disco novamente, e desci para a zona plana da praia para ir receber o disco.
Ficámos nisto uns bons 15 ou 20 minutos. Eu aproveitava para fazer uns lançamentos, ora contra o vento, ora a favor do vento, e o cão corria zarpava atrás do disco. Noutras ocasiões, fazia um hover sobre o cão, para ver até que altura ele saltava na ânsia de apanhar o disco.
Só que, a certa altura, o quadrúpede, em vez de me trazer o disco, decidiu ir lavá-lo. Já não estava a contar ir à água, estava de calções que não era suposto molharem-se, e o nevoeiro ameaçava e tirava-me a vontade de me molhar. Mas teve de ser, pois só assim recuperaria o disco. O cão ainda se fez de difícil, mas lá acedeu em deixar-me apanhar o disco, e assim se acabou a brincadeira. Despachei-o com um ar severo, e voltei para o meu poiso.
Depois de mais uma noite muito bem passada, acordo com uma manhã cinzenta e húmida. O sol não se quis mostrar e, perante esse cenário, pensei que o melhor que tinha a fazer era preparar-me para abalar cedo para outro destino. Esse era o plano, mas enquanto tomava o pequeno almoço, vi passar o meu amigo de quatro patas, acompanhado do dono, surfista de prancha grande, em direcção à água. E, poucos minutos depois, porque talvez o cão não seja grande surfista, ou porque simplesmente é mais adepto do frisbee do que do surf, lá o tinha outra vez ao pé de mim. Resolvi dar-lhe nova oportunidade mas, passado algum tempo voltou a fazer a mesma brincadeira. Lá voltei para o meu recanto, com o disco lavado, e os pés molhados.
Não muito tempo depois, apareceu-me o dono do cão, com um simpático convite para me juntar a ele e à mulher, na caravana deles, para tomar qualquer coisa. A dita caravana era uma muito recente VolksWagen California, com muitos extras, entre os quais a tracção 4x4 que o permitiu chegar aquele local remoto. Era um casal alemão, entre os 35 e os 40 anos de idade, que viajavam naquele veículo na companhia do cão, grande, e de um bebé de 4 meses, muito pequenino. Incrível o que era possível acomodar dentro daquele carro que, apesar de tudo, não é maior do que muitos outros que circulam pelas cidades no dia-a-dia.
Ele era ex-profissional de kite-surf e windsurf, ela professora primária, e tinham vindo aproveitar umas poucas semanas de férias, à procura de praias desertas, sol em abundância e, eventualmente, algumas ondas. Vinham do centro da Alemanha, onde tudo isso é escasso ou inexistente, com um espírito de comunhão com a natureza, com a praia e com o mar. Quantos casais portugueses conhecem que fariam uma viagem destas com uma criança tão pequena?
E, assim, passámos um par de horas a conversar. Sobre as suas viagens como atleta profissional, confirmando-me que o windsurf, embora seja uma modalidade muito agradável, tem realmente o grande problema das dimensões do equipamento. Ou, de alguns locais por onde já passáramos os dois, comparando notas. Ou do estilo de vida que cada um tinha, num país e noutro. Foram umas poucas horas de conversa casual, interessante e agradável, à volta de uma caneca de chá quente que me "soube a pato".
Como já era perto do meio-dia e o sol não se mostrava. Chegou a altura de nos despedirmos. Não iríamos ficar grandes amigos e nem sequer trocámos contactos. Não foi porque a companhia não nos tivesse agradado. Antes pelo contrário, estou certo que eles tiveram tanto prazer com aquela troca de impressões quanto eu. Simplesmente, estes momentos não são repetíveis, porque só existem graças a um combinar de imensos factores, que os tornam tão únicos que não vale a pena tentar reproduzi-los. Afinal, desta vez, o encontro não fora provocado por haver bicicletas em comum. Apenas porque havia um disco, e um cão.
RF