no L’Antique 200, dez anos depois da nossa estreia

paulofski @ na bicicleta

Publicado em 23/01/2023 às 16:53

Temas: marcas do selim bicicleta brevet ciclismo cicloturismo dos malucos das biclas voadoras fotografia fotopedaladas L' Antique 200 longas pedaladas motivação outras coisas randonneur Ribatejo singlespeed Sua Alteza

Um Brevet Randonneur Mondial tem uma distância a pedalar e tem um mote. No caso do brevet inaugural do ano dos Randonneurs Portugal, o L’Antique 200 é um evento de 200 e tal quilómetros com um nome a condizer, o qual merece ser pedalado numa bicicleta a condizer. Uma bicicleta à antiga.

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Os pneus de Sua Alteza ainda estão enlameados de fresco e já sai o relatório e contas de mais uma aventura por estradas de outros tempos.

Nas três edições que pedalei ao longo do Tejo, pelas planícies ribatejanas, levei sempre uma bicicleta diferente e todas elas duras como o aço. Em 2013, na edição da minha estreia, Sua Alteza foi a escolhida. Veículo básico e sem mudanças de humor, esta bicicleta é a pura reminiscência do que os ciclistas tinham para pedalar nos primórdios da velocipedia.  

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Desejando voltar a um dos meus lugares míticos, rever o Tejo, a luz do sol a afastar as nuvens e a colorir a planície, clarear panoramicas de cortar a respiração, aquecer o corpo e o coração, o melhor pretexto foi pedalar por estradas ensolaradas e rolantes da lezíria ribatejana.  O dia estava um mimo, mas uma morrinha persistia em nos abençoar o depart.

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O sol de inverno e a boa companhia foram o antídoto perfeito para combater o forte vento vindo de Norte e que constante nos batia na cara. Mantive-me no grupo da frente e fiz jus à curtição que é pedalar em pelotão. Aqui e ali, às custas da potência alheia, fui aproveitando o corta-vento da forte Nortada que também fez questão e veio participar neste brevet.

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A aragem ia frisando as orelhas e para meu benefício imperava a boa colaboração e disposição no minipelotão. Depois de um momento pés na lama, lentamente fomos aquecendo os motores. Desta vez não tive a companhia dos meus amigos habituais. Por assim dizer tive de me enquadrar com outros randonneurs com estilos e máquinas radicalmente diferentes, aproveitando o andamento com participantes provenientes de outras nacionalidades. Ao que me disserem eramos uns sessenta randonneurs a pedalar no mesmo sentido.

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Mais uma vez, teimosamente sem o recurso à geringonça indicadora do caminho, recorri às minhas memórias e à cabula preparada para o efeito. Na aproximação de Santarém segui o instinto mental de virar à direita e subitamente sinto-me só, a escalar e depois a caminhar pela habitual subida às portas da cidade escalabitana, porque não dei ouvidos ao aviso no briefing matinal. Foi por mera casualidade que fui “apanhado” pelo Miranda e juntos entramos no jardim das Portas do Sol para o pit stop e para mais uma vez desfrutar de uma das vistas mais bonitas sobre o Tejo.

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Prossegui só, por minha conta e risco desde aí, ao meu ritmo, em boa cadência contra a Nortada que não facilitava em nada a minha progressão pelos campos desabrigados. Golegã havia ficado para trás e quando seguia numa daquelas rectas intermináveis vislumbrei os coletes amarelos de um grupeto. Na Azinhaga sentei-me ao lado de José Saramago que me segredou ao ouvido, que se tivesse viajado nesta bicicleta, da obra “Viajens de Portugal” teria escrito mais dois ou três calhamaços.

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Voltei para a lezíria, para o vento contra, e a perceber que lentamente me aproximava do grupeto. Acho que tiveram pena de mim, ali sozinho contra o vento e esperaram por mim. Tenho a certeza que não foi por isso, mas isso agora também não interessa nada. Juntos chegamos à Quinta da Cardiga um dos postos de controlo tradicionais do L’Antique.

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Até aqui foram bons quilómetros a sentir os dentes e o esqueleto a ranger do mau estado do alcatrão. Estradas tranquilas, em grande parte do percurso, excepto em alguns trechos de estradas nacionais, compensados ao atravessar pacatas vilas onde a bicicleta é parte do cenário, fundamental modo de vida. De novo a rodar o único pedaleiro, não tardou que tivéssemos de borrar os pneus na lama, no famoso 1,5 km de terra mais enlameada que batida do L’Antique. Pura emoção!

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Recuperado o asfalto fofinho, depois de sair de Vila Nova da Barquinha passamos por Tancos. A minha expectativa de passar novamente ao largo do Casal do Pote, pequeno aquartelamento do Regimento de Engenharia onde fiz a recruta, era muita já que durante uma fase marcante da minha vida ali andei a marcar passo. Tudo como dantes no quartel… rendido ao abandono e à passagem dos anos.

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Cheguei a Constância para o carimbo, para a sopa e degustar a boa da bifaninha, muito antes da hora que havia previsto e, como tal, deu pra relaxar, telefonar, actualizar o Instagram e tudo. Na retoma da estrada, não querendo que o Camões ficasse chateado, Sua Alteza deixou-se fotografar com o poeta na premissa que eu a levasse lá prá Ilha dos Amores.

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Eu ia em plena sornice pela ondulante estrada nacional, curtindo o momento e deixando que o pelotão das bicicletas modernas com desviadores XPTO fugisse, desviei e fui ao miradouro (ou será miratejo!) mirar o belo Castelo de Almourol. Assim, o soldadinho de chumbo voltou a conquistar o castelo, mesmo que não se tenha atrevido a atravessar o Tejo.

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À passagem pela Chamusca, onde à minha visão de uma máquina infernal, que diz que é um Locomóvel mas de “móvel” tem pouco, quanto ao “Loco” Sua Alteza apontou-me a manete, um pouquinho mais à frente saí da estrada nacional para voltar às estradinhas esburacadas pela lezíria ribatejana.

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De novo as antigas estradas, caminhos rurais, de cabras ou lá o aquilo é, com longos quilómetros de alcatrão esburacado, pavimentadas de terra batida, lamacentas. Dira um velho amigo meu que uma prova clássica sem pavé não é clássica, não é? Mil vezes o paralelo do que isto. O vento lateral fazia-se sentir, especialmente à passagem pelos campos desabrigados, mas na maior parte do tempo a nortada estava pelas costas, o que, desta vez, até ia ajudando bastante a minha progressão.

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Em Alpiarça tive o cuidado de não falhar o posto de controle que passou a estar colocado de novo num local sossegado, ao largo de uma pequena barragem, mas não sem antes me deter junto ao monumento em honra dos ciclistas e fazer novo registo fotográfico.

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Já nos últimos minutos de luz natural e após a passagem pela estreita e tridimensional Ponte Rainha D. Amélia, depois de uma paragem para reforço alimentar e do vestuário, foi sob um lusco-fusco fascinante, com a boca bem fechada a levar com nuvens de mosquitos na fuça, que pedalei a bom ritmo os trinta e tal quilómetros finais.

Este L’ Antique, nas três participações anteriores também, mas particularmente este Brevet, soube-me mesmo bem e soube tão bem chegar ao final e ser recebido com este belo sorriso. Obrigado Carla.

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Volvidos estes anos desde o meu primeiro brevet o que mudou? Bem, estou dez anos mais velho, seguramente. Estou bem mais magro, mas isso é evidente. E comum com aquela que me transportou, e ainda me transporta, Sua Alteza Velo Invicta, estamos ambos mais carunchosos, mais ferrugentos, mas mais experientes.

Este Brevet também é teu Amigo Jacinto.

Aqui o registo no Strava e… Até Breve(t) pessoal.

 

reciclando [47] resoluções/desejos/coisas para fazer em 2023

paulofski @ na bicicleta

Publicado em 2/01/2023 às 12:08

Temas: o ciclo perfeiro 2023 bicicleta boas pedaladas bom ano ciclismo ciclismo urbano cicloturismo fotografia fotopedaladas motivação outras coisas penso eu de que...

Refeito dos efeitos dos temporais, da doçaria natalicia e do fogo de artifício no wc, volto aos pedais e encaro o futuro na direcção certa com as duas rodas bem assentes no chão. Esta é altura ideal para estabelecer novas metas e considerar alguns desejos para alcançar nos próximos 12 meses.

Pretendo respirar ar puro e mover o meu corpo todos os dias. Seja para enfrentar a loucura rodoviária no meu comute diário ou numa saida precária para aliviar o stress, mexer as perninhas faz sempre bem.

Espero ter vontade suficiente para me levantar todos os dias da cama e me desafiar, mesmo que seja só para ir numa lúdica aventura estradeira ou betêteira. Que enfrente a estrada com ânimo e alcance o cume de pelo menos uma montanha.

Anseio que o trambolhão da praxe seja suavezinho, venha como mais uma lição e que tenha paciência e perspicácia para aprender essa mesma lição, pela enésima vez… Pelo menos faço figas para que não mande mais nenhuma bicicleta para o galheiro!

Aspiro manter as amizades fortes e fazer muitas outras. Novos companheiros de estrada com quem possa compartilhar sonhos e objectivos. Correr o risco de enfrentar as distâncias e os incautos automobilistas. A escuridão e reflectir a minha presença na via, até ao nascer do sol. Ah… e que as assaduras não esgotem o stock de Halibut.

Confio que as correntes e os cabos do desviador se aguentem à bronca. Caso cedam, então  que aconteça a pouca distância de casa ou pertinho de uma loja de bicicletas. O mesmo espero que aconteça com os infalíveis furos, ou pelo menos que não me chateiem quando me esquecer da câmara sobressalente… ou da bomba-de-ar!

Parar de comprar coisas de ciclismo que já tenho ou que então não precise, mesmo que as promoções me consumam. Posso sempre tentar algo que parece ser impossível, encontrar as meias certas ou os óculos escuros quando estiver pronto para sair para mais uma pedalada, mas não prometo.

Finalmente, que tenha tempo e capacidade iguais para me deliciar com uma viagem requintadamente longa para depois ter um dia de descanso requintadamente preguiçoso. Claro que o desejo de liberdade é mais forte que a paixão, certamente encontrarei o valor em ambos. Pelo menos ter assegurada aquela boleia de resgate quando não houver outra salvação.

E é tudo, acho…!

Bom ano, muita saúde e boas pedaladas.

 

fotocycle [268] pedal… ando sobre as águas

paulofski @ na bicicleta

Publicado em 21/12/2022 às 12:47

Temas: fotocycle 1 carro a menos a chuva não atrapalha as biclas sabem nadar à chuva bicicleta bike to home boas pedaladas bom ano Cantareira ciclismo urbano ciclistas urbanos do Porto devaneios a pedais fotografia fotopedaladas Maria del Sol mobilidade motivação Natal outras coisas pedaladas no inverno Porto

O inverno está aí à porta, mas já nos atormenta há mais de um mês. Sentidos em alerta máximo, olho para cima e um céu carregado e triste me cumprimenta. Cheiro a presença da chuva e o instinto me diz que em algum momento irá desabar na minha cabeça. Sem hesitar, arrisco o regresso a casa pela rota mais longa, ao longo do rio. Começo mais lento do que o normal, uma atmosfera gelatinosa e amorfa estorva o progresso das minhas rodas. Através de rabanadas de vento marítimo, inspiro e os pulmões enchem-se de ar húmido. Em pouco tempo o vento rodopiante me abraça e cospe leves borrifos na minha cara. Voltado para o azul, vejo laivos alaranjados, impressionistas espalhadas por uma borda do céu. Um breve vislumbre do sol, que me provoca entre manchas cinza e brancas, flutuando no horizonte. Nuvens irritadas que se podem zangar e eu sem nenhum lugar para me esconder! Mas a vitória é minha.

Aproveito todos os momentos e aproveito também este para deixar aos meus visitantes uma mensagem de Feliz Natal e um 2023 com bastante pedalada.

 

quando o sábado chega

paulofski @ na bicicleta

Publicado em 30/11/2022 às 12:40

Temas: motivação 1 carro a menos abanar o capacete benefícios das pedaladas bicicleta bike boas pedaladas ciclismo cicloturismo dar a volta desporto devaneios a pedais fotografia fotopedaladas longas pedaladas mobilidade outras coisas passeio pedaladas no inverno penso eu de que... quem pedala assim... Serras do Porto

Respiro, travo, estremeço… Olho para baixo. Guio o pneu da frente com cuidado, não vá pisar um galho ou um buraco no asfalto. Tenho de fazer mais uma curva. Desço o monte na velocidade possível, condicionado, com um calafrio nas orelhas. Como um falcão que voa na altura certa, flutuo admirando a beleza e o brilho do sol da manhã. O cheiro, o ar fresco e as longas sombras. Às vezes tudo parece se encaixar no lugar. Um galo que canta e que tudo acorda. Os cães que ladram em uníssono, à minha passagem, ecoando no vale. 

Porque eu queria encontrar um local tranquilo procuro as estradas desertas. Mas nem sempre estou só. Percebi o carro que seguia atrás de mim. Instintivamente, defendo a minha posição na estrada. Um pouco mais à frente, num local mais espaçoso, dou sinal e o carro passa, acelerando na sua vibração. Também sou trânsito, de bicicleta, tentando ficar seguro. Isso às vezes não é fácil. Mantenho a pedalada e os pensamentos.

Há mais uma curva, apertada, seguida de outra colina, e esta é íngreme. Já a conheço bem. Engreno a mudança certa para a escalada. Parecia que tinha muita energia, mas não sei porquê estava a perder forças! Então percebi que era fome. Em vez de estar a pensar no almoço, precisava de subir. Continuei. No cimo senti como se alguém tivesse virado a ventoinha na minha direcção. Estou cansado, mas não posso pensar nisso. O suor que transpiro é a minha conquista. A banana que trago no bolso será o meu prémio.

Cruzo pequenas aldeias ao longo do caminho. Muitas vezes penso sobre as pessoas que vivem em áreas remotas. O que elas sacrificam para viver ali. O mais certo é que não sacrificam nada. Vivem felizes. O ambiente pode moldar as nossas visões e opiniões. É muito diferente do que estou acostumado e isso faz-me lembrar o quão agitada é a vida na cidade. Imagino-me a morar ali. No meio da serra, naquela tranquilidade, entre as tonalidades outonais de uma floresta de carvalhos. Só que não, é um eucaliptal, imenso a perder de vista…. O tempo parecia passar de forma rápida. Olho o relógio e lentamente retomo o rumo, de volta para a confusão.

Aquelas nuvens negras, em aproximação, não me parecia nada promissor. Comecei a sentir chuva fina. Ao longe podia ver uma clareira, e eu disse a mim mesmo que talvez tivesse sorte. Foi sol de pouca dura. Vinte minutos depois estava sob chuva constante, e estava contente. Na descida, com o corpo a arrefecer, comecei a pensar se não seria boa ideia me refugiar no café. Não valia o incomodo de parar para vestir a capa de chuva. As minhas roupas já estavam encharcadas e estavam! Acelerei ainda mais para me aquecer. Uma vintena de quilómetros e estava sob chuva forte, o suficiente para parar. E parei, à porta de casa, feliz com a minha pedalada. Ensopado e animado.

Depois da bicicleta pendurada, depois do banho retemperador, não demorou muito para relaxar e entrar no balanço das coisas. Ao ver as fotografias captadas, o filme passa veloz pela minha cabeça, o que faz com que a mente vagueie. Sinto as pernas. Procuro saborear o momento, porque pode se passar algum tempo até sentir isso de novo. Sou optimista e positivo, porque gosto do que faço e qualquer viagem a pedais é tudo o que preciso para a regular o corpo e a mente. Também preciso de um café.

Por que tenho mais tempo no fim de semana para desfrutar do ar livre, viajar, experimentando uma vida simples, um modo diferente, a pedalada vai mais longe. Então, qual vai ser a tua próxima aventura? Já não lhe chamo aventura. Em última análise é para mim um estilo de vida que amplifica a felicidade, a minha e daqueles que me rodeiam. Há algo em nós que anseia por paz e tranquilidade, e o nosso estilo de vida determina como vamos experimentá-lo. Ás vezes uma simples volta de bicicleta pode ser anti climática. É terapêutica. É o antidoto para todos os problemas. Você planeia, organiza e antecipa o dia. Então quando o sábado chega, penso… Ok, vamos lá a isso! A mais uma sessão de terapia.

 

fotocycle [267] depois de um fim de semana prolongado…

paulofski @ na bicicleta

Publicado em 2/11/2022 às 12:10

Temas: fotocycle 1 carro a menos bicicleta bike to work ciclismo urbano ciclistas urbanos do Porto ciclovia commutescount devaneios a pedais fotografia fotopedaladas humor meios de transporte mobilidade motivação no meu percurso rotineiro pr'o trabalho olha pró que digo e não pró que faço outras coisas pneus Porto Prelada Sua Alteza Velo Invicta

… não sei se foi da comidinha boa da aldeia, ou por ter estado quatro dias sem pedalar, acho que estou com uns pneus a mais!

 

Triban RC520 Gravel - Uma Review

@ Lisboa Bike

Publicado em 18/10/2021 às 23:22

Temas: bikepacking review

A Triban no Gerês 

Comprei a minha Triban quase por impulso, em Novembro de 2019, quando em casa moravam já outras duas bicicletas de estrada. Estes modelos eram algo peculiares: uma Surly Long Haul Trucker, a bicicleta mais confortável em que já rolei, e uma velhinha Raleigh inglesa dos anos oitenta, que eu usava sobretudo para fins utilitários.


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A minha antiga Surly 


O que eu procurava, já há algum tempo, era um modelo que permitisse substituir todas as outras bicicletas (as duas já citadas e uma BTT). A elusiva bicicleta única, que fosse capaz de fazer estrada a sério, viagens de longa distância, com carga, BTT em eventos e passeios, uso utilitário, e tudo o mais que se me ocorresse. E que fizesse tudo isto com alguma competitividade, que me permitisse participar ocasionalmente em eventos. Bem sei que não é pedir pouco, para mais de um modelo "económico". 


A Triban com todos os componentes de origem


A escolha da Triban foi motivada, se for sincero, sobretudo pelo preço aliciante, tendo em conta tudo o que oferecia. Mas pareceu-me na altura uma solução de compromisso, já que eu considerava que a Decathlon tinha sido um pouco preguiçosa e simplesmente mudado o nome e a pintura a um dos seus quadros de estrada. Era apenas uma estratégia para a marca ter um producto que lhe permitisse concorrer no mercado na área então muito na moda, o "Gravel".

Bom, isso não deixa de ser um facto: trata-se de uma bicicleta de estrada, com algumas alterações, mas eu estava enganado. Para mim esta escolha veio a revelar-se extremamente acertada, e embora a bicicleta tenha certamente limitações, é difícil para mim ver alternativas viáveis neste momento. Vamos ver o que está em causa. (Nota: não tenho nenhuma ligação com a Decathlon e estas opiniões são minhas apenas).

Quadro: Para mim carbono estava fora de questão, por causa do uso para viagens longas em autonomia e o uso de bolsas de bikepacking. Os danos por atrito dos sacos ou numa queda são um risco demasiado grande. Aço e Titânio são materiais interessantes e esteticamente mais apelativos, mas mais caros e também pesados. Por isso alumínio acaba por ser uma boa escolha. O peso neste caso é apenas aceitável (os números estão no site). A surpresa veio da geometria. Eu tinha estudado a tabela e sabia que o quadro é exactamente o mesmo da gama de estrada. Portanto trata-se de um quadro "barato" de Endurance, com uma testa alta e uma posição pouco agressiva. Isso é ideal para longas distâncias e muitas horas no selim, e a geometria veio a revelar-se muito adequada para a minha fisionomia, depois de alguns ajustes. Eu não tenho muita flexibilidade natural e a minha postura não é muito agressiva. A bicicleta é muito estável em qualquer circunstância, mas mantém a capacidade de reacção e aceleração de uma bicicleta de estrada, que uma bicicleta de viagem (touring) não tem. E fora de estrada só em BTT mais sério perde a compostura, como seria inevitável. 


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Cassete, corrente e pedaleiro alterados


Grupo: A Triban vinha com um grupo Shimano 105 R7000 quase completo. Apenas a pedaleira era uma Shimano compacta de 11 velocidades, mas sem grupo, um pouco mais pesada que a 105 equivalente. Aqui eu achava que era mais uma das situações em que a Decathlon tinha feito a coisa mal, a cassete 11-32 (não Shimano) era demasiado pequena, e pensava na altura que a bicicleta deveria vir com um pedaleiro sub-compacto e talvez com um grupo GRX. A verdade é que esta mania da super-especialização dos componentes é muitas vezes exagerada. A transmissão não se desfaz se apanhar poeira por ser um grupo de estrada. O desviador Shimano 105 não é muito diferente de um Deore, as correntes e cassetes são aliás idênticas em vários grupos de estrada e BTT da Shimano, pelo que o desempenho fora de estrada não compromete. Já as relações de transmissão são claramente mais pensadas para o asfalto. Para rolar com peso extra e/ou fora de estrada (como sucede em bikepacking), optei por colocar uma pedaleira Miche 46-30 e uma cassete Shimano 105 maior, 11-34. Mesmo assim, eu agora reconheço que para um uso maioritariamente de estrada, a bicicleta vinha com um bom mix de peças. De tal forma que recentemente voltei a usar a cassete de 32 dentes original, para beneficiar de relações mais próximas entre si.    

 

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Os travões facilmente se ressentem com o pó


Travões: Os travões TRP mecânico-hidráulicos permitem casar um grupo totalmente mecânico, mais barato, nestes caso os shifters Shimano 105 R7000, com o modulação e sensações de um travão hidráulico. E a verdade é que funciona. Esteticamente é uma desgraça, mas funciona. Eu travo só com um dedo a maior parte das vezes. E a sensação de controlo é sempre boa. Há que notar contudo que estes travões estão mais à vontade em estrada, basta um pouco de pó para começar a haver vibrações e perdas de potência na travagem, quando em uso em gravilha ou terra. E só depois de uma limpeza cuidadosa é possível voltar a ter uma boa performance. 


Guiador 44, mais estreito


Periféricos: Não posso falar muito destas coisas, porque foi quase tudo substituído rapidamente. O guiador era demasiado largo, o meu quadro XL vinha com guiador de 46cm, com um desenho de drops com que eu não me identifiquei. Troquei por um simples FSA de gravel, abertura a 12º, de tamanho 44. Apesar de mais pequeno ainda permitia o uso de sacos de bikepaking. O avanço de 120cm foi trocado por um de 80, para afinar a posição na bicicleta. Muitas bicicletas de gravel modernas são desenhadas para avanços curtos, e neste caso a adaptação foi natural. Sim, ao princípio eu também achei que era muito curto, mas fez maravilhas pela postura e pelo controlo da bicicleta. Mudei também o selim, por outro muito semelhante, e o espigão do selim, por estética e peso. 


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No Porto!


Rodas & Pneus: Usei pouco as rodas. Eram robustas e não deram problemas, lembro-me que os cubos pareciam bastante bons para esta gama de preços. Foram trocadas por umas DT Swiss, para perder umas gramas. Os pneus Hutchinson Overide de 35mm são excelentes. Têm uma aderência teimosa e salvaram-me o pelo em mais de uma ocasião. Permitem aventuras fora de estrada que a sua diminuta largura não deixa prever. E em estrada rolam muito bem. Há melhor e mais leve (e mais caro), mas não muito. Quando comprei a bicicleta achei que os pneus eram mais um compromisso, agora acho que são um excelente compromisso! Actualmente monto pneus de 38mm, a marca só recomenda até 36, mas a verdade é que cabem 40mm se fizer falta. Mas penso voltar aos 35mm quando surgir a oportunidade, julgo que é o melhor equilíbrio estrada-gravel e a marca voltou a acertar neste aspecto.   

Dois anos depois, dois Tróia-Sagres, uma volta a Portugal de várias semanas em autonomia, uma viagem a Madrid, o caminho de Fátima, uma subida à serra da Estrela, e muitas aventuras mais pequenas pelo meio depois, a Triban provou que não é só um modelo barato feito à pressa para seduzir os adeptos da "moda" do gravel. Não se deixem enganar pelas soldaduras mais abrutalhadas, nem pela palavra "Decathlon" na testa do quadro, a bicicleta foi bem pensada, o desempenho nunca compromete e tem alma para tudo o que se propuserem fazer com ela. 


Set-up recente, na Serra da Estrela


O facto de custar menos um terço ou metade dos modelos da concorrência também não é propriamente mau. Actualmente há vários modelos e cores disponíveis, baseados no mesmo quadro, que, consta, é fabricado em Portugal (o meu, especificamente, diz "made in France"). É possível também comprar um dos modelos de estrada da gama 520 e depois adaptar a um uso mais polivalente, já que o quadro é idêntico, mudando a pintura e a selecção de componentes.   

Não tenho actualmente nenhuma outra bicicleta, nem sinto falta de nada. Sei que não é solução para toda a gente, o meu uso tem sido muito lúdico e mais estradista, ultimamente. Mas é inegável que esta proposta low-cost permite acceder a um inesgotável mundo de aventuras, cujos limites não serão impostos pela bicicleta.

 

Projecto Caramelos: Dia 4 - Na Autoestrada, a Fugir à Polícia, com um Pneu Furado

@ Lisboa Bike

Publicado em 23/07/2021 às 0:20

Temas: bikepacking viagem

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Caramelos?


Decidido a evitar mais apertões de calor e surpresas tardias na jornada, na manhã do quarto dia levantei o rabo da cama o mais cedo que consegui. Tomei o pequeno almoço, incluído na estadia, tão cedo quanto era permitido e fiz-me à estrada. Desta vez tinha alojamento reservado, e estava decidido a ter um dia diferente. Para minha surpresa consegui mesmo fazer a navegação para fora da zona urbana de Trujillo sem percalços. Normalmente o meu GPS não permite esses luxos, mas naquela manhã tudo corria sobre rodas.


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Rumo a Este, como sempre


É claro que esta bonanza não poderia ser duradoura. Depressa percebi que a altimetria para a jornada era mais desafiante que nos dias anteriores. E o que não mudava contudo, era a temperatura elevada, e as grandes distâncias entre terras, amplos espaços onde não havia nenhuma possibilidade de descanso, refugio do Sol ou reabastecimento. O Deserto Espanhol, como lhe chamam alguns Portugueses de passagem, a caminho de destinos mais populares na Península Ibérica, faz jus ao seu nome.


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Olha, montanhas!


A manhã foi gasta a deambular por estradas de montanha, a ritmos muito lentos, enquanto a temperatura ia aumentado, até ficar intolerável. Continuava a não haver sombras para parar, nem lugares onde obter água ou comida. O desgaste era grande e o moral da expedição ia descendo ao ritmo que desciam também as reservas de líquidos disponíveis a bordo. Começava a ficar claro que, mais uma vez, não ia conseguir arrumar a etapa a tempo de evitar o calor infernal da tarde, no Deserto Espanhol.


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As coisas não são fáceis no deserto


Umas bombas de gasolina foram a minha salvação. Estava a ficar viciado em Aquarius, a coisa mais parecida a uma bebida energética que era possível encontrar em quase todos os postos de abastecimento de combustíveis. Eventualmente a estrada "alisou", depois de uma longa descida, onde cheguei a passar dos 75km/h. Tinha voltado a ficar sem almoço pois não encontrei nada pelo caminho na hora apropriada, estava a ficar frito pelo Sol, mas sabia que já estava perto do destino.


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Sombra! Para a bicicleta...


Eu claramente já estava acusar o desgaste do calor, do esforço e da falta de comida. Foi neste estado que rolei até um cruzamento onde a estrada em que eu estava continuava para Oeste, coisa que não me interessava nada. Eu tinha que virar para Este, no sentido de Talavera de la Reina e Madrid. A minha dormida para a noite era em Oropesa, uma cidade a meio caminho. Rolar no sentido contrário era andar para trás,

Para Este, na direcção certa, a única estrada era a Autovía para Madrid, a A-5. Autovía é o nome dado à rede de autoestradas gratuitas, que ligam Madrid com o resto do país. Eles também têm estradas a que chamam mesmo "autoestradas", mas tecnicamente são a mesma coisa. Logo, não é permitida a circulação de bicicletas em nenhuma destas vias. Mas era para aqui que o GPS insistia que eu deveria ir, e francamente, eu não estava a ver alternativas.


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O dilema



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O percurso que eu fiz


Consultei o Google Maps, que me indicou que eu, de facto, deveria mesmo virar à direita, para Este, para a autoestrada! Não podia ser. E no entanto, fazia sentido e não parecia existir alternativa. De notar que o processo de tomada de decisão decorria junto ao cruzamento, à torreira do Sol, já que como era costume, não havia nem um palmo de sombra em lado nenhum. 

Era tarde. Apesar de eu ter começado cedo, o dia já ia longo. Pressionado pelo calor, tive um momento "fuck it", e abalei a toda a velocidade para a Autovía. Tudo o que eu sabia era que sombra, água e descanso ficavam mais perto naquela direcção. Mesmo que esses luxos fossem obtidos numa esquadra da polícia, sempre era uma melhoria em relação à minha situação actual. A minha análise risco-benefício não era assim tão má.

Na autoestrada fui recebido por um ensurdecedor coro de buzinadelas. Ninguém abrandou nem nada do género, mas imensos automobilistas buzinaram para me avisar do meu "erro". Eu ignorei tudo e todos e rolava na berma a velocidades próximas dos 40km/h. Àquela velocidade depressa estaria debaixo de um belo duche gelado no hotel que tinha reservado e poderia esquecer aquele incidente. 


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A Autovía à esquerda


Mas claro, não poderia ser tão fácil. Estava a ensaiar mentalmente o que diria aos policias quando chegassem, coisas como "custava assim tanto plantarem umas árvores para dar sombra?" ou "quem é que foi o palhaço que desenhou a vossa rede de estradas?" quando o som inconfundível de um furo me chegou aos ouvidos. A rolar a toda a velocidade na berma, tinha passado por cima de alguma porcaria e o pneu traseiro começou a perder ar de forma audível. O líquido anti-furos não estava a funcionar e em pouco tempo estava a rodar encima do aro.

Abrandei o suficiente para não dar cabo da roda traseira, mas não parei. Não me pareceu boa ideia parar na AE... Depois reparei que havia uma área de serviço não muito longe e arrastei a bicicleta ferida até lá, instalando-me rapidamente num cantinho onde não estorvava ninguém. Debaixo do olhar curioso de camionistas, desmontei o que pude da bicicleta carregada e removi a roda traseira. 

Não tinha ar. O tubeless estava frito e ia ter que colocar uma câmera de ar, mas resolvi tentar pelo menos voltar a encher de ar e ver se a coisa aguentava. Mas por mais que tentasse, parecia que a minha bomba de ar também não estava operacional. E agora eu sentia que estava a perder rapidamente o controlo da situação. Olhei para cima e questionei "Não tens mais nada para mim agora?" 

E nesse momento, um carro patrulha da Guardia Civil entrou na área de serviço.


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O caminho para "casa"


Os agentes olharam para mim, e foram à sua vida. E isso deixou-me a pensar. Normalmente em Espanha não há a balda que se vive em terras lusas, se eles me ignoraram era porque deveria haver uma forma legítima de chegar ali, que justificasse a minha presença na área de serviço. Coloquei a câmera de ar no pneu de trás, montei tudo de volta o melhor que pude e fui dar mais uma olhada no Google Maps.
 
Só nessa altura é que eu percebi. Paralela à Autovía, ao longo de vários quilómetros, seguia uma pista de gravilha, onde era permitida a circulação de veículos. Tinha sinais de trânsito e tudo. Essa pista passava por trás da área de serviço e justificava a minha presença no local. E a de eventuais tractores e maquinaria agrícola. O piso de gravilha era mauzito, um bocado no limite para os meus pneus finos, já para não falar para o meu nível de desgaste naquele momento. Mas era uma alternativa à AE!


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Vista à chegada a Oropesa


E foi assim que, depois de reparar a minha mini-bomba e enchido por fim o pneu traseiro, fiz os últimos 30km a rolar em verdadeiro gravel. De vez em quando tinha umas atrevessadelas mais cabeludas, já que a tracção com pneus estreitos e lisos não era a melhor. Mas era suficiente. E por aquelas alturas, suficiente ia ter que chegar.

 
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Já fiquei em sítios piores



Dia 4. Trujillo-Oropesa. 128km. (Estrada/AE) 
 

Projecto Caramelos: Dia 7 - Até às Montanhas

@ Lisboa Bike

Publicado em 23/07/2021 às 0:07

Temas: bikepacking viagem

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Dois ursos e uma bicicleta


Ao Norte da capital Espanhola fica um lugar de mistério e imponência. Os Madrileños, como todos os citadinos de uma grande e competitiva urbe, adoram escapadas de fim de semana, para destinos mais serenos nos arredores. Alguns destes possíveis destinos ficam na Serra de Guadarrama, uma solene cadeia montanhosa a Norte da capital, com picos que ultrapassam os 2000m.

Tinha decidido que o meu destino final para esta viagem seria uma destas aldeias incrustadas no sopé da serra, um curioso misto de vila alpina e subúrbio urbano, já que fica a apenas 50km da capital. Uns amigos tinham-me prometido uns dias de alojamento com direito a relaxamento total, na tranquilidade das montanhas. E isso parecia-me o final perfeito para esta pequena viagem.

Dada a proximidade, tinha planeado gastar a maior parte do dia em Madrid e seguir para Norte só no final da tarde. Assim, tratei de organizar a logística do meu regresso, planeado para uns dias mais tarde, e patear a cidade. 

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Puerta del Sol



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Calle Preciados



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E uma estátua de corvos em Lisboa?



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A velha Madrid



Mais importante, tinha um almoço (tardio, como todos em Espanha) combinado com uma amiga, que é a única pessoa que conheço que mora efectivamente na capital do reino. Passámos horas à conversa numa simpática esplanada. Acho que perdi um pouco a noção do tempo, até que um sopro de vento fez voar alguns itens de cima da mesa. Olhei para o céu, e fui surpreendido por umas nuvens sinistras que se avizinhavam, no que até ao momento tinha sido um impecável céu limpo.

Passava das 18 horas, e eu considerei aquela a minha deixa para me pôr a caminho. A travessia da capital teria sido facilitada se o meu pneu traseiro não estivesse vazio. Não compreendi como tinha furado entretanto, mas acabei por deduzir que a válvula da câmera de ar que tinha instalado uns dias atrás não estava a vedar bem. Bombei um pouco de ar, junto ao Bernabéu, e segui caminho. Tinha alguma pressa, já que agora era evidente que uma tempestade se aproximava, dirigindo-se, tal como eu, para Norte.    


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O céu limpo deu lugar a nuvens sinistras


Encontrei com alguma facilidade a ciclovia que segue para Norte, um percurso que em outras ocasiões tinha visto da estrada e que sabia me poderia levar até muito perto do destino. Este é o habitat natural dos ciclistas de estrada da zona, e foi sem surpresa que me cruzei com muitos deles. Seguiam todos na direcção contrária, apressados por se abrigarem da tormenta que todos sabíamos próxima. 


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Para Norte!


Embora o pôr do sol estivesse previsto para dali a mais de duas horas, o céu escureceu de forma assinalável, à medida que a frente de tempestade se aproximava. Os outros ciclistas começaram a escassear na ciclovia, até desaparecerem por completo. Agora estava só eu, rumando a Norte, numa corrida contra a tempestade. Eu desconfiava que quando aquela massa de ar colidisse com as montanhas à nossa frente, o resultado não seria muito agradável para mim. 



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Percebem?


E não foi. O trovejar começou distante, mas em pouco tempo os raios caiam à minha volta, sem refugio à vista. O céu escureceu ainda mais, até ficar practicamente de noite, e uma chuva ligeira começou a cair, obrigando-me a parar para colocar o impermeável, a primeira vez que o usei na viagem. Era capaz de jurar que até o Dentuça estava intimidado, sobretudo quando a ciclovia acabou e tivemos que nos fazer à estrada.   


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A coisa promete!


E foi neste troço, de estrada estreita, sem berma e com bastante trânsito, que os céus finalmente se abriram e um dilúvio impiedoso assolou o sopé da serra, retirando ainda mais visibilidade e obrigando-me a cuidados redobrados. Apesar de duas boas luzes na traseira, levei com algumas razias preocupantes. De notar que os automobilistas espanhóis costumam respeitar os ciclistas muito mais que os portugueses (respeito é um conceito estranho em Portugal), mas por norma conduzem, na minha opinião, tecnicamente pior. Ou seja, têm um pior domínio do veículo e são mais facilmente surpreendidos por imprevistos.

Naquela estrada senti-me verdadeiramente em perigo, mas não havia muitas alternativas a continuar. Até que surgiu uma muito rara paragem de autocarro, com abrigo, que eu imediatamente adoptei como refugio. Foi um achado providencial, pois o dilúvio já me tinha ensopado até aos ossos, e a estrada estava mesmo perigosa, com a visibilidade extremamente reduzida.


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Na paragem do BUS


Uns minutos depois, as coisas acalmaram e eu regressei à estrada, que me havia de levar à magia da montanha em Manzanares el Real. Esperava-me um belo jantar entre amigos e uns dias de merecido descanso do guerreiro. 



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Dia 7. Madrid-Manzanares el Real. 49km. (Estrada/Ciclovia) 

 

Projecto Caramelos: Dia 6 - O Assalto à Capital

@ Lisboa Bike

Publicado em 19/07/2021 às 1:10

Temas: bikepacking viagem

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Caramelos?


O ar quente que me recebe à saída do hotel, pelas nove da manhã do sexto dia de viagem, já não surpreende. Tomei atempadamente o pequeno almoço e tenho memorizada a navegação que devo fazer para sair de Torrijos e regressar ao track de GPS que me há de levar à capital do Reino das Espanhas. A esperada distância de apenas 86km dá-me alguma tranquilidade para lidar com eventuais imprevistos.


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Não tendes nada com menos faixas?


Eu sei que para um ciclista de estrada que se leve a sério (e não faltam ciclistas de estrada que se levam muito a sério), 86km podem ser os kms de aquecimento para se juntar ao grupo numa manhã de Domingo. Para um ciclista utilitário, habituado a conciliar trajectos urbanos com os transportes públicos, pode parecer uma distância impossível. Cada um tem a sua bitola. Eu sei que sou capaz de distâncias de 200km, mas isso será normalmente num evento de um único dia, e em condições favoráveis. O calor e as distâncias entre paragens a que o Grande Deserto Espanhol obriga, reduzem claramente o meu desempenho. 

Seja como for, tenho todo o dia para chegar à Puerta del Sol, em Madrid, o destino para hoje. O meu GPS primitivo, esse traidor inveterado, vai cumprindo a sua função até chegarmos aos arredores da capital. O entramado de zonas industriais, centros comerciais, parques empresárias e vias rápidas dos arrabaldes de Madrid apresenta as primeiras dificuldades de navegação. O GPS parece insistir em enfiar-me numa das inúmeras "M", as vias rápidas radiais por onde flui boa parte do trânsito da capital espanhola.
    

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Madrileños, no seu habitat natural


Depois dos eventos do dia 4, estou especialmente atento e resistente à possibilidade de me voltar a enfiar numa via reservada a paquidermes metálicos. Mas o GPS tenta que eu o faça, uma e outra vez, até que volta mesmo a acontecer. Sigo numa estrada que de repente se transforma em acesso para uma "M" qualquer. Sem possibilidade de voltar para trás, lá estou eu a ser de novo recebido por um coro de buzinadelas. Felizmente a estrada estava em obras e a velocidade era reduzida. Saio assim que posso, e dou por mim em mais um parque industrial. 


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Na berma da via rápida em obras


Nesta altura já tinha passado mais uma vez da hora do almoço, o calor apertava e a minha frustração subia. Optei por desistir de vez do GPS e passei a usar o telemóvel. Pedi ao Google Maps um trajecto em bicicleta de onde estava para o centro de Madrid, e ele forneceu-me um percurso... inesperado. Para usar o telemóvel tinha que estar sempre a parar, pois ele seguia no bolso da jersey, mas eu estava disposto a isso para garantir a fiabilidade na navegação.
 

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Rumo a Madrid!


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Ciclovias de luxo 

De início esta nova metodologia parecia uma grande ideia. O percurso levou-me por parques e ciclovias que eu de outra forma nunca teria encontrado. O ritmo era lento, devido às paragens constantes e à natureza do percurso. Em certa altura quase perdia a carteira, com todos os meus cartões e documentos, de tanto andar a mexer no bolso para consultar o telemóvel. Mas foi só um susto e recuperei tudo em poucos minutos. Mais para a frente o percurso começou a ficar mais... exótico. 


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Há de haver uma cidade por aqui algures


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Madrid??


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Hum...


Começava a duvidar das ideias do Google Maps. Atravessei descampados, zonas de armazéns abarracados e outras zonas muito duvidosas. Fiz um pouco de BTT puro e duro, e circulei numa estrada fechada que estava aparentemente transformada numa lixeira a céu aberto. Passei em zonas que pareciam ter sido cenário recente de algum botellón épico, com o lixo e garrafas de centenas ou milhares de pessoas. Em todo este percurso não vi nenhum outro ser humano, o que por mim estava ótimo, mas levantava dúvidas sobre a esperada aproximação a uma das maiores zonas metropolitanas da Europa. 



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Sim, é uma lixeira numa estrada abandonada


Mas não havia motivos para preocupações. Eventualmente os trilhos transformaram-se em percursos dentro de jardins e parques, e depois em avenidas urbanas, que eu comecei a reconhecer. Estava em Madrid! A cidade nunca foi muito cycle-friendly e tem do trânsito mais agressivo que conheço, mas era excelente a sensação de estar a rolar em terreno conhecido. Lentamente, mas com confiança redobrada, fiz o meu caminho até ao hotel, junto à Puerta del Sol

Parecia surreal estar num ambiente tão cosmopolita, depois de tanto tempo passado no deserto. As ruas e avenidas estavam cheias de turistas, as esplanadas e bares a abarrotar de gente que parecia falar todas as línguas. Guardei o turismo e as fotos para o dia seguinte, pois teria tempo de desfrutar da cidade. Agora o que eu precisava era de uma cerveja, para celebrar os mais de 700km da ligação Lisboa-Madrid, percorridos em seis dias.


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Madrid!


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Vista de quarto


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Bicicleta no quarto #4

Dia 6. Torrijos-Madrid. 90km. (Estrada/Ciclovia) 
 

Projecto Caramelos: Dia 5 - Daquilo De Que São Feitos Os Sonhos

@ Lisboa Bike

Publicado em 18/07/2021 às 20:49

Temas: bikepacking viagem

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What? Nunca comeram feijoada na cama?


O Sol vai baixo e as sombras alargam-se pelas concorridas ruas do centro da capital espanhola. A bicicleta rola sem esforço pelo empedrado polido, o som da roda livre ecoando docemente nas paredes das casas centenárias. Desvio-me dos transeuntes com movimentos fluídos e elegantes, mantendo um ritmo suave mas constante. Sei, sinto, que estou a chegar. "Calle Victoria" leio numa placa na esquina de uma rua pedonal. Apropriado. Cá estamos. Entro na rua, a escassos metros da Puerta del Sol, o ponto mais central da capital do reino. Percorro os últimos metros entre esplanadas e um mar de turistas. A luz é simplesmente perfeita e de algum lado escuta-se o início de "In your eyes" de Peter Gabriel. É então que a vejo. Os cabelos cor de cobre resplandecem no contra-luz do final de tarde. O colorido vestido de verão destacando a sua silhueta na rua apinhada. Os nossos olhares cruzam-se, atraídos por alguma força invisível. "Estás atrasado", diz ela, esforçando-se por esboçar o seu melhor ar reprovador, mas não contendo o sorriso. 


Não chego a articular a minha resposta, que antevejo ser hilariante e charmosa, pois há um crescente som irritante que monopoliza a minha atenção. Não percebo de onde vem, mas parece conhecido... Instintivamente, silencio o alarme do telemóvel e levo alguns segundos a reconhecer o que me rodeia. São seis da manhã e ainda está escuro lá fora. Acendo a luz e levanto-me a custo da cama. Esforço-me por recordar que estou numa casa rural em Oropesa, uma pequena terra da província de Toledo, bem no meio do Grande Deserto Espanhol. 


Arrasto-me para o WC, mas as pernas pesam-me como dois marcos dos descobrimentos, e tenho o equilíbrio de um marujo bêbado recém regressado da carreira da India.  Tenho muita sede, embora me lembre de me ter hidratado bem a noite anterior. Lavo os dentes e constato que, de alguma forma, tenho a boca cheia de sangue seco. A próxima etapa da minha higiene matinal não é mais animadora: pelo quarto dia consecutivo, a minha urina é da cor de Earl Grey. Saio da casa de banho a murmurar alguma coisa sobre "isso não deve ser bom". Ao lado da janela aberta, repousa o Dentuça. O seu olhar parece questionar: "O que é que estamos a fazer?"



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#3 Bicicleta cá dentro


Não tenho resposta. Por isso limito-me a prosseguir mecanicamente com as arrumações. Tomo o pequeno almoço que tinha preparado e saio para a rua pelas sete da manhã. A esperada brisa refrescante não se materializa. Mesmo a esta hora, o dia está abafado. Nada posso fazer quanto a isso, mas posso acelerar o ritmo enquanto o Sol não me queima as pestanas. 


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Habitual reabastecimento num posto de combustível


Sigo meio macambúzio pela estrada fora. Aos poucos os músculos começam a responder melhor e consigo manter um ritmo confortável. Pela hora do almoço rolamos pela cidade de Torrijos, feia como poucas. Metade dos estabelecimentos comerciais estão encerrados, entaipados. E não é coisa recente, nem efeitos do COVID, alguns dos graffiti que "decoram" estes estabelecimentos têm décadas. Há edifícios de habituação no mesmo estado. E isto no centro, nos arredores o panorama ainda é mais deprimente. Mas o calor aperta e eu não quero outro dia a terminar tarde, comigo a transformar-me numa papa, rodeada de uma poça de suor. 



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Sombras e bancos! Foi a única vez que vi tal coisa!



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Mais um dia no deserto



Faço uma reserva pelo telemóvel para um hotel, convenientemente situado ao lado de um armazém, uma bomba de gasolina (da Galp!) e uma lavagem automática, e minutos depois estou na recepção. É um alívio sair do Sol da tarde! Descanso um pouco antes de voltar a sair, já trajando à civil, para conhecer a zona. Há um interessante stand de carros clássicos, exibindo um Clio Williams e vários Mercedes dos anos setenta, apetitosos, tudo rodeado por um matagal descontrolado, que parece saído de um filme pós-apocalíptico. E um supermercado para grossistas onde comprei uns petiscos a baixo preço, aparentemente safando-me da questão de não ser comerciante, não estar registado e não ter um NIF espanhol, por ser um turista parvo, o que suponho seja justo.

Refugiado no meu quarto de hotel climatizado, comendo várias excelentes iguarias, como uma feijoada, de lata, fria, pondero a cordura das minhas últimas decisões. Apesar de tudo estou vivo, estou inteiro, e pelo menos agora sei porque o Deserto Espanhol não parece ser grande coisa de destino turístico, e menos ainda para ciclistas. Amanhã, salvo algum imprevisto, estarei em Madrid. O GPS diz que serão apenas 86km de caminho, o que pode correr mal?

Dia 5. Oropesa-Torrijos. 107km. (Estrada) 
 
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